V - A Mãe Mundinha...


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Rúbia e a Mãe Mundinha
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Desde o suicídio de Mondrongo há cerca de seis meses, Rúbia encontrava-se em um estado de depressão muito forte, atormentada por um sentimento de culpa e um remorso terrível. Vivia chorando e não se alimentava direito. Mas nem de longe pensava em procurar ajuda médica, psiquiátrica ou psicológica, pois não suportava psicólogos e afins.

Rafaelle, a filha médica, não falava com a mãe desde o ocorrido. Culpava a mesma argumentando que ela nunca soubera compreender seu pai. Era a mais apegada a Mondrongo. Quase entrou em choque com a mãe no dia do enterro.
Danielle, a empresária casada com italiano, não tomou posição nenhuma. Já há muito tempo não tinha contato nem com o pai nem com a mãe por morar na Itália. Não sabia o que sentir diante do pai morto. Estava bem-sucedida e isso era importante para ela.
Emanuelle procurava evitar falar com a mãe, pois se sentia mais culpada que a própria. Achava que seu pai havia se matado pelo desgosto de a filha ter se tornado uma atriz pornô. Andava muito triste.
Michaelle, que ainda mora com a mãe, era a única que a apoiava incondicionalmente. Ama demais sua mãe e achava que o pai era um pouco sem-vergonha. Não que ela achasse certo ou bom o que ocorreu, mas era a favor da vida e não suportava ver a mãe naquele estado.
Chandelle, que também mora com a mãe, não havia entendido ainda o que aconteceu. Sua cabeça estava confusa demais. Não conseguia acreditar. A coisa que mais achava linda nesse mundo era ver seus pais juntos, mas agora...

Então, certo dia, conversando com Dominique, Rúbia foi aconselhada a procurar uma ajuda espiritual. Lembrou-se de uma médium e clarividente de quem havia ouvido falar certa vez. Ela chamava-se Mãe Mundinha. Resolveu procurá-la e encarar a situação. Ficou sabendo que a Mãe atendia em sua própria casa que ficava na Zona Leste da cidade de São Paulo. Telefonou para marcar horário e falou com uma secretária ou coisa assim. A sessão ficou agendada para dois dias após a ligação.
Chegado o dia, Rúbia arrumou-se e colocou uma maquiagem para disfarçar suas olheiras e sua aparência de quem vinha chorando seis meses seguidos, pois queria passar a imagem de uma mulher forte. Encontrou um pouco de dificuldade para localizar o local, mas não perdeu o horário. Ao tocar a campainha, foi recebida por uma garotinha moreninha, muito simpatiquinha, de cabelinhos crespinhos, mas bem cuidadinhos que pediu para que aguardasse em uma salinha simplesinha. Lembrou-se de sua infância ao ver a menininha correndo e gritando pela avó:
- Ô vóóó! A Rúbia chegou!
Achou uma gracinha o fato de a menina saber seu nome. Não demorou a que uma senhora negra de estatura mediana surgisse na sala onde Rúbia aguardava. A senhora usava um enorme vestido branco, um turbante na cabeça, várias pulseiras que quase cobriam seu antebraço esquerdo e uma infinidade de guias e colares no pescoço. Pensou que deveria haver mais colorido em suas guias do que em um computador de 64 bits e pensou também que aquela senhora parecia uma vendedora de acarajés da Bahia ou uma passista da ala das baianas de alguma escola de samba da Zona Leste. Lembrou da Whoopi Goldberg no filme Ghost e quis dar risada, mas se conteve.
- Bom dia, minha fia! Eu sô a Mãe Mundinha! Suncê parece triste pur dimais. Inté parece qui vem chorâno faiz seis mêis. Coitadinha, vâmu cunversá, qui suncê deve di tá cuma série di pobrema. – disse com uma mistura de sotaque nordestino com caipira e uma voz grave.
O cumprimento foi algo muito estranho aos olhos de Rúbia. Ao invés de beijos no rosto como Rúbia está acostumada, a Mãe Mundinha a segurou pelos ombros e a puxou duas vezes, batendo-a forte contra seu corpo. O ombro esquerdo de Rúbia em seu ombro direito e depois o seu ombro esquerdo no direito de Rúbia. E, a cada vez, soltava um gemido mais ou menos assim: “un-hum, un-hum”.
Acompanhou a Mãe até sua salinha de atendimento. Viu uma decoração assustadora e olhava para todos os cantos. Havia uma mesinha no centro, uma luz fraca e nas paredes havia de tudo, desconfiou que se procurasse bem poderia até achar uma foto sua. Havia santos, pais-de-santo, quadros e imagens religiosas de vários tipos, mais guias, crucifixo, plantas, flores, lanças, muitas velas, retalhos e uma série de outras coisas que não conseguiu definir com uma rápida passada de olhar. A Mãe pediu para que sentasse em uma cadeira à sua frente, de costas para a porta, e perguntou:
- E intaum! U qui vai sê? Búzios, tarô, leitura de mãos, astrologia, bola de cristal, runas, cristais, hipnose, numerologia, leitura da mente, borra do café, cabala?
- Nooossa! A senhora faz de tudo mesmo, hein!? – espanta-se Rúbia.
- É a crise minha fia! – responde a Mãe.
E Rúbia diz:
- Olha, na verdade, eu queria uma forma de poder pedir perdão para o meu marido que se suicidou há seis meses. Eu tenho me sentido muito culpada por isso.
- Ah! Intaum é isso o motivo di sua tristeza? Intaum precisâmu fazê cum qui suncê peça perdão a ele pessoalmente. – disse ela no momento em que levantava uma faca enorme.

***


Rúbia espantou-se e quase saiu correndo, pensando que aquela mulher iria fazê-la se encontrar com Mondrongo em outro plano astral. Mas, antes que Rúbia pudesse se mexer, a Mãe apareceu com uma galinha nas mãos não se sabe tirada de onde e, com a faca, fez um corte no pescoço da mesma e começou a espalhar o sangue que escorria por toda a mesa. Rúbia quase vomitou e quase saiu correndo novamente.
A Mãe pediu para que ela se levantasse, pois precisava de um descarrego. A Mãe Mundinha começou a esfregar com força suas mãos nos braços de Rúbia, dos ombros até suas mãos, sempre de cima para baixo e, vez por outra, estalava os dedos à sua frente algumas vezes. E dizia:
- Un-hum! Mizifia tá carregada! Un-hum! Vâmu discarregá! Vâmu discarregá!
Após isso, Rúbia sentiu-se aliviada e muito mais leve. Sentou-se novamente. Mãe Mundinha acendeu duas velas gordas e as colocou sobre a mesa, uma de cada lado. Pediu para segurar as mãos de Rúbia e perguntou qual o nome do marido e ela respondeu:
- Bruno Mondrongo!
Então a Mãe pediu para que Rúbia se concentrasse e fechou os olhos. De repente, ela começou a soltar um barulho pelo nariz como alguém meditando e começou a fazer movimentos circulares com a cabeça sobre os ombros. Rúbia podia ver, pois não conseguia ficar com os olhos totalmente fechados. Olhava com um dos olhos semi-aberto. Agora, podia ver os olhos da Mãe revirados apresentando somente suas escleróticas brancas e começou a ficar assustada.
Após um curto tempo, mas que para Rúbia pareceu uma eternidade, aquilo se acalmou. Seus olhos voltaram ao normal, ou quase, não pareciam ser os dela, mas olhavam fixamente dentro dos de Rúbia. Então a Mãe disse:
- Oi, Rúbia!
Rúbia assustou-se, largou as mãos da Mãe, engoliu seco e seu coração parecia uma rajada de metralhadora. Seus olhos se arregalaram e sua boca pendia semi-aberta. Era a voz de Mondrongo!
- Oi, amor! Tudo be...
- AMOR!? – gritou ele – Como assim AMOR!?
- Não faz assim comigo, por favor! Eu vim aqui te pedir perdão. Eu te amo! Aquilo que você escreveu no banheiro...
- Ah! Esquece aquilo! Você não sabe o inferno que eu estou passando aqui por sua causa! – retrucou a voz – É muita dor, medo, frio!
Rúbia já chorando, disse:
- Querido! Deixa-me conversar com você. Eu não queria que chegasse a esse ponto, eu não queria que isso acontece...
- HÁ! HÁ! HÁ! – interrompeu com cara de deboche.
- Eu te amo! Por favor, me perdoa! Onde você está? Por que fez aquilo? A Rafaelle não fala mais comigo, a Chandelle está quase doente... – insistiu ela.
- HÁ! HÁ! HÁ! – respondeu com expressão de raiva– E eu com isso? Você está viva. Cuida delas. HÁ! HÁ! HÁ!
E, nesse momento, a Mãe Mundinha começa a tremer, seus olhos se reviram de novo, sua cabeça se inclina para trás e de sua boca aberta começa a sair uma fumaça que vai crescendo até o teto da salinha e começa a tomar forma de algo que parece humano. O corpo da Mãe Mundinha cai inconsciente para frente e seu rosto se lambuza com o sangue da galinha.
A fumaça vai ganhando outra consistência. A sala começa a ficar gelada. A fumaça se torna uma criatura de fogo, mas é um fogo gelado, meio branco, meio vermelho. Rúbia não consegue distinguir. É difícil explicar. Consegue visualizar um par de chifres no alto. Ela está muito assustada. Sacudia a Mãe Mundinha para que a mesma acordasse, mas não teve êxito. E a criatura se dirigiu a Rúbia e falou com voz dupla:
- Não adianta criança! HÁ! HÁ! HÁ! Ela não vai acordar! Eu vou te levar comigo! Seu marido não te perdoa! Ele precisa de você ao lado dele! HÁ! HÁ! HÁ!
- NÃO! Saia daqui! Eu não vou com você nem morta! É... quer dizer... anh!... só se for por cima do meu cadáver... é... não, melhor não. É... fique longe de mim! E do meu marido também! Seu monstro! O que é você?
- Eu sou aquele que cuida do seu marido agora! – respondeu em voz dupla, a criatura – Você não vivia mandando ele ir para o inferno? É lá que ele está agora e você vai comigo também, criança!
Nesse momento, o demônio atira uma bola de fogo gelado em direção a Rúbia. A mesma salta da cadeira para o lado direito e consegue escapar. O fogo é branco e começa a queimar as paredes da salinha da Mãe Mundinha. Algumas outras bolas de fogo são atiradas e começam a viajar pela salinha ao encontro de Rúbia que corre pela pequena sala, atira alguns santos na criatura, mas essas passam direto por seu corpo de chamas. Rúbia pula tentando desviar das rajadas, até que uma passa de raspão em sua perna. A dor é fortíssima e faz com que Rúbia caia no chão e coloque as mãos na perna. Sente como se tivesse descido em um escorregador seco, sem roupas, mas é frio.
A salinha está quase toda em chamas. A criatura flutua e do alto ataca Rúbia e ri, se divertindo muito, parece estar em um jogo de videogame. Ao ver Rúbia caída, lança mais uma bola de fogo que acredita ser a derradeira, mas Rúbia desvia o corpo para a esquerda e se dirige à porta. Antes mesmo de ela chegar até a porta, a mesma se transforma em uma cortina de fogo, não permitindo que Rúbia fuja. Então, ela vira-se novamente para a criatura, olha bem em seus olhos e pensa em Mondrongo com todo o amor que sente por ele. O demônio a observa sem entender.

***


As duas velas que estão na mesa ainda se encontram acesas. Parecem ser o único fogo quente do local. Rúbia continua pensando em Mondrongo. O demônio continua olhando para Rúbia. As chamas das velas começam a se esticar e a se atrair uma para a outra. Ao se encontrarem, brilham forte e começam a se entrelaçarem em uma espiral que vai subindo e subindo até o teto, começam a engrossar e a tomar forma humana. A temperatura do local começa a esquentar.
Rúbia vê medo nos olhos do demônio. Ela também sente e não consegue disfarçar, pois também não sabe o que está acontecendo. A nova criatura que se formou se põe em posição de ataque contra o demônio e libera uma forte rajada de luz de suas mãos, o que faz com que o demônio voe para trás e bata na parede.
Não se dando por vencido, o demônio ainda ataca o outro espírito com suas bolas de fogo, fazendo-o cair para trás também. Começa, então, um festival de fogo e luz, de calor e frio, de brilhos e explosões pela sala. Rúbia pode perceber, em um momento, que as duas criaturas começaram a duelar com uma rajada constante, cada um de um lado. Como aquelas cenas que se vêem em desenhos animados. O demônio atacando com uma rajada constante de fogo contra o outro espírito com uma rajada constante de luz. O ponto em que as duas rajadas se encontravam brilhava demais, quase deixando Rúbia cega. Oscilava de um lado para o outro como em uma disputa de cabo de guerra. Quando viu o lado de luz aumentar, começou a torcer pelo espírito que parecia ter chegado para lhe salvar.
Quando a luz alcançou o demônio, houve uma explosão que o jogou para trás. O demônio se levantou enfurecido e quando pareceu que iria atacar com toda a fúria que ainda lhe restava, se transformou em uma chama voadora que deu algumas voltas pela salinha e, gritando, entrou pelo pescoço cortado da galinha e desapareceu. Junto com ele todo o fogo se apagou, menos os das velas. Começou a ventar pela sala toda e tudo foi se ajeitando no lugar anterior, peças quebradas se consertaram sozinhas e voltaram ao lugar de origem.
Ao se recompor, Rúbia olhou em volta e viu o espírito olhando-a serenamente e percebeu que conhecia aquele olhar. Então disse, emocionada:
- Mondrongo?
- Oi, Rúbia! – disse com a voz que por anos andou ao lado de Rúbia.
- Amor, eu vim te pedir perdão pelo que eu te fiz. Eu te amo! Você me salvou. Como você está?
- Eu estou mal! Suicidar-se não é nada agradável. O que te espera do outro lado não é gratificante quando se nega o maior presente que se ganha de Deus. A vida! Eu vim para o vale dos suicidas. É um lugar horrível!
- E... quem era esse que estava querendo me levar com ele? Era o diabo? – questionou Rúbia.
- Não, não! Ele não se dá a essas promiscuidades. Era apenas um de seus súditos. – esclareceu o espírito de Mondrongo.
- E... e... você está com ódio de mim mesmo? É verdade o que o demônio disse?
- Foi verdade! Quando cheguei onde estou senti muito ódio, mas já aprendi que este sentimento não me levará a lugar algum, quer dizer, me leva para lugares cada vez piores. Estou num lugar horrível, pois tirei minha vida, mas já tenho compreensão suficiente para aceitar minha punição.
- Você pode sair quando quiser? Aparecer assim? – empolgou-se Rúbia.
- Não! Eu não posso sair nunca enquanto estiver aqui. O que me trouxe de volta por esse instante foi o seu amor.
- Me perdoa, amor! Eu não fui compreensiva, fui precipitada. Que horror! – diz Rúbia inconformada.
- Eu é que devo te pedir perdão por ter sido fraco, por não ter pensado em você nem nas meninas. Eu te perdôo, mas não pode ser um trabalho só meu.
- O que eu posso fazer para amenizar minha culpa, para merecer seu perdão definitivo, para melhorar sua condição?
- Preciso que você cuide bem de nossas filhas, gaste seu dinheiro em boas causas e procure uma religião espiritualista que dê valor aos antepassados e ore muito por mim. Assim, as coisas irão se ajeitando gradual e naturalmente. Agora preciso ir! – disse Mondrongo, ainda em tom sereno.
- Claro! Adeus! – despede-se Rúbia.
- Adeus! Eu sempre vou te amar!
E, nesse momento, a figura que era a visualização de Mondrongo foi se tornando, novamente, uma espiral de luz e voltando para as velas, se desenrolando até sumir. Com as chamas das velas normalizadas, Rúbia leva outro susto quando a Mãe Mundinha levanta sua cabeça da mesa, de repente.
Ela está com os olhos arregalados, o rosto sujo de sangue de galinha e puxa o fôlego muito forte até encher por completo seus pulmões, quase acabando com o ar da salinha, como se tivesse ficado durante uma semana sem respirar debaixo d’água, e falou:
- E intaum, mizifia, cunversô co seu marido?
- Conversei, Mãe, conversei,. Muito obrigado! – respondeu, aliviada.
- Qui bão! Já tá inté cas aparência mio, né fia? – confortou-a Mãe Mundinha – Acho qui ocê pricisa acertá a sessão.
- Ah! Claro! Está aqui! – falou Rúbia colocando dinheiro nas mãos da Mãe e completou – É..., Mãe! Posso levar as velas?
- Craro, fia, pode levá, pode levá!
Assim ela foi embora para casa descansar um pouco para no outro dia, muito mais alegre, começar a procurar o que foi orientado por Mondrongo, para que as coisas começassem a entrar nos eixos em sua vida.

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